São já bem conhecidas várias relações entre o Direito e a Literatura, a começar pela decantada trilogia "Direito na, como e da Literatura", tratada por diversos autores. Neste artigo vamos considerar algumas metodologias já existentes para o estudo da relação entre esses dois ramos do saber, considerando-se que se trata de uma relação transdisciplinar.
Comecemos analisando a relação entre o Direito e os elementos literários encontrados na cultura popular, citando José Calvo González[2], ao dizer que a ligação entre poesia popular e filosofia penal tem sido pouco explorada. Há formas poéticas populares presentes no folclore, que focalizam principalmente a punição ou pena, interessando, dessa forma, às políticas criminais concernentes e relacionando-se aos problemas de identidade e etnicidade sociopolítica e cultural. Ressalta González que, não sem certa surpresa, do estudo do folclore poético tem sido possível haurir certas intuições, muito anteriores ao normativismo jurídico institucional, que permitem constatar a espontânea juridicidade que entranha as canções, os brinquedos infantis e o folclore. Por essas razões, para Gonzáles, é perfeitamente cabível falar de uma identidade cultural que liga a Literatura popular ao Direito.
São vários os pontos de interseção entre o Direito e a Literatura. Ainda para González[3], as interseções entre o jurídico e o literário resultam dos diversos itinerários e trajetórias percorridos por ambas as partes. Essas interseções se articulam, conforme o autor em apreço, através de classes gramaticais que atuam como ponte, organizadas concretamente mediante três proposições: em, indicando lugar; de, denotando pertinência; com, expressando a circunstância com que algo acontece; e ainda o advérbio modal como, quer dizer, de que modo. Ora, aqui nos deparamos com o problema da linguagem, que é sempre presente quando analisamos a relação entre Direito e Literatura. Todavia, neste trabalho, consideramos que, além de ser um problema de linguagem, trata-se também de uma questão metodológica.
Para Andrés Botero Bernal[4], existem vários modelos para armar a relação entre Direito e Literatura, a saber: modelo retórico de relação, modelo expositivo de relação, modelo metodológico de relação, modelo analítico de relação, modelo jurídico de relação e modelo estético de relação. Tais modelos classificatórios que, segundo o referido autor, não são puros mesclam-se aos discursos da disciplina jurídica relacionados com as obras literárias e são úteis para pôr em evidência as vias metodológica e analítica desse campo de estudo.
A narrativa, por sua vez, é uma metodologia comum ao Direito e à Literatura. Assinala Gustavo González Solano[5] que a literatura do Direito é, dentro do gênero narrativo, a mais clara, precisa e circunstanciada, esclarecendo que a literatura do Direito abarca diferentes estilos e modalidades além do narrativo, como o biográfico, o jornalístico, o ensaio, o discurso, dentre outros, sendo que todos fazem parte da racionalidade jurídica.
Importa, ainda, lembrar o que ensina Paulo Ferreira da Cunha[6], ao dizer que os rituos ou rituais, dos quais o Direito está cheio, são metodologias. Para tal autor, o problema ritual volta-se também num problema de Direito e Literatura, onde o processo judicial é como uma peça literária a várias mãos, que se desenrola em vários capítulos, cada um narrado por um diferente interventor.
Não podemos esquecer dos vínculos entre Direito, Literatura e Hermenêutica, conforme ressalta Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy[7], justificando que a prática jurídica é exercício de interpretação que vai além de leis e contratos. Diz Godoy que, para melhorar a compreensão do Direito, é preciso utilizar instrumentos que possibilitem comparações entre interpretações jurídicas e interpretações de outros campos do saber e da experiência humana, acrescentando que proposições jurídicas também são juízos interpretativos da história do direito, que contêm indicativos de decisão e de avaliação. Por essa razão, afirma que o Direito é matéria de interpretação que não se faz isolada de outros ramos do conhecimento.
Para Germano Schwartz[8], a construção de um novo sentido para o Direito implica a premissa básica de que não é um organismo afastado das ocorrências do sistema social. Ao contrário, é parte dele, atuando e interagindo com todos os subsistemas da sociedade, quaisquer que sejam. Para esse autor, a Literatura, componente do sistema da Arte, é importante no sistema social para influenciar, por intermédio da comunicação, os demais subsistemas da sociedade. Com esse ponto de vista concorda Godoy[9], dizendo que o Direito é fato inegável do meio social. Alcança todas as latitudes, longitudes, tempos pretéritos e presentes.
Em suma, a pesquisa transdisciplinar do Direito e da Literatura é sempre obra aberta e, como tal, pode ser compreendida não apenas como ciência, mas também como uma obra de arte.
Notas:
[1] O presente artigo é uma versão resumida, em língua portuguesa, do primeiro tópico do artigo publicado pelas autoras: A transdisciplinary methodology for the relationship between Law and Literature. Italian Society for Law and Literature. http://www.lawandliterature.org/index.php?channel=PAPERS . 03/10/2010.
[2] GONZÁLEZ, J. C. El cante por Derecho. Málaga, Ayuntamento de Málaga/Área de Cultura, 2003.
[3] GONZÁLEZ, J. C. Derecho y literatura. Intersecciones instrumental, estructural e institucional. In: Implicación Derecho Literatura (Director José Calvo González), Granada, Editorial Comares, 2008.
[4] BERNAL, A. B. Derecho y Literatura: um nuevo modelo para armar. Instrucciones de uso. In: Implicación Derecho Literatura, op. cit.
[5] SOLANO, G. G. La racionalidad o razonabilidad jurídica: uma historia de ciência ficcion. In: Implicación Derecho Literatura, op. cit.
[6] CUNHA, P. F. Do rito à Literatura em Direito. In: Implicación Derecho Literatura, op. cit.
[7] GODOY, A. S. M. Direito & Literatura - Ensaio de síntese teórica. Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2008.
[8] SCHWARTZ, G. A constituição, a Literatura e o Direito. Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2006.
[9] GODOY, A. S. M. Direito & Literatura - Anatomia de um desencanto: desilusão jurídica em Monteiro Lobato. Curitiba, Juruá, 2002.
Maria Francisca Carneiro, Pós-doutora em Filosofia, doutora em Direito.
Maria Fernanda Loureiro, Mestranda em Direito Empresarial e Cidadania pelo Unicuritiba, especialista em Direito Público, advogada.
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Fonte: Paraná Online
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