por Carlos Lúcio Gontijo
No dia 9 de abril deste ano (2011) fui de mudança para Santo Antônio do Monte, onde agora resido com Nina, mais as lembranças guardadas nos escaninhos da memória, a cachorra Kika e o meu trabalho literário de escriba menor, que, ao tomar a internet como instrumento de divulgação, pode ser produzido a partir de qualquer lugar. Ou seja, hoje posso me permitir a alegria de devolver aos meus passos as calçadas de minha infância em solo santo-antoniense.
Distante fisicamente das hostes pretensamente iluminadas do chamado mundo das celebridades intelectuais, sob a certeza de que meu círculo é grande, mas minha roda é pequena (como costuma dizer meu compadre Mário Antônio), fico a observar o mar de vaidades e disputas por que navegam os lavradores (não confunda, amigo leitor, com labradores!) da arte da palavra, que deveria ser apenas instrumento de deleite e transformação dos poucos leitores de que dispõe o Brasil.
Ainda recentemente, em protesto contra a escolha de “Leite Derramado” (editora Cia das Letras), de Chico Buarque, como livro do ano de 2010, na categoria de ficção, embora tivesse ficado em 2º lugar na qualificação romance, o Grupo Editorial Record anunciou boicote ao Jabuti, que é o mais tradicional prêmio da literatura brasileira.
Entornado o caldo ou derramado o santo leite franciscano do festejado compositor da música popular brasileira, cuidaram os organizadores do Jabuti de logo fugir da sina de vagareza das tartarugas. Formaram uma comissão composta por 12 integrantes do mercado editorial e 20 membros da Câmara Brasileira do Livro, para repensar o regulamento do Jabuti, que é uma premiação destinada muito mais às editoras que aos autores. A límpida realidade que joga algum facho de claridade sobre a questão é que as inscrições são pagas e não havia, portanto, qualquer interesse de o Jabuti se ver repentinamente sem o aporte financeiro da Record, que em 2010 rendeu cerca de US$10 mil, com a inscrição de 108 títulos.
Enquanto isso ocorre no terreno dos laureados da cultura nacional, tenho nas mãos o romance “Triângulo Vermelho”, uma obra produzida pelo idealista Ádlei Duarte de Carvalho, jovem sobrevivente das águas turvas (e honestas) da literatura independente, para iniciar leitura e providenciar-lhe um prefácio. Dessa forma, custa-me assistir estarrecido à cantora Maria Bethânia captar 1,3 milhão para montar um site com 365 vídeos de poesia, ao passo que tantos outros se veem obrigados a arcar com a sempre onerosa impressão de seu trabalho literário.
Como mantenho no ar, desde junho de 2005, o site Flanelinha da Palavra, posso reconhecer o explícito caso de superfaturamento no polêmico episódio do blog de poemas da cantora Maria Bethânia, ora dublê de declamadora, fato só possível diante da completa ausência de política cultural verdadeiramente democrática e criteriosa, uma vez que não pode assim ser considerada a famigerada Lei Rouanet, que comete o equívoco imperdoável de conceder a autores já consagrados (e capazes de andar com as próprias pernas) a possibilidade legal de lançar mão de recursos públicos então travestidos de benevolência ou mecenato privado, através do qual o empresário patrocina, ganha visibilidade e depois é beneficiado na hora do pagamento de impostos junto ao governo como se houvesse feito favor ou caridade.
Dessa forma (e por isso), temos recursos sobrando para os iluminados pelos holofotes da grande mídia e que são logicamente os preferidos pelos empresários, que buscam, única e exclusivamente (em sua maioria), a exposição mais imediata e fácil de seus produtos e marcas. Bethânia sabe disso e não é a primeira vez que faz valer seu prestígio no tráfico de influência, pois há três anos, quando teve o pedido de captação (de R$1,8 milhão) para uma turnê negado pela área técnica do Ministério da Cultura, não se fez de rogada e, ignorando o posicionamento contrário, recorreu ao auxílio do então ministro Juca Ferreira, baiano como ela, e prontamente disposto a materializar mais uma baianada cultural com a autorização para a captação de 1,5 milhão.
Há alguns anos, esse tipo de situação me enchia de contrariedade e desesperança, mas hoje, apesar de ainda me indignar, não me proponho a digladiar com os pantagruélicos devoradores de recursos públicos, acreditando tão-somente que o simples fato de eu estar preparando o lançamento do meu 14º livro (o romance “Quando a vez é do mar”), em comemoração ao meu 60º aniversário, em abril de 2012, serve de silenciosa resposta a esse panorama cultural em que editoras se desentendem por prêmio e declamadora é mais valorizada que os poetas que se entregam ao indispensável espargir de luz da poesia como veículo de sensibilização da raça humana, que despoetizada se embebe em incontido levar vantagem em tudo, em violência e no desamor ao próximo, repercutidos até a última gota pelos jornais, rádios e emissoras de televisão, às quais os avanços da tecnologia da imagem chegaram antes de uma programação capaz de contribuir para a construção de uma sociedade regida pela sonhada convivência fraterna e sem espaço para manobras fraudulentas ou a substituição do mais competente pelo mais esperto.
Carlos Lúcio Gontijo
Poeta, escritor e jornalista
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