sexta-feira, 18 de março de 2011

Cinco tiros Por: Luís Henrique Pellanda - Crônica

Há um homem assassinado debaixo da minha janela. Sei que existem aqueles, mais sortudos, cujas janelas se abrem para o mar, a praça, o campo ou mesmo uma infinidade de outras janelas, sendo que de cada uma lhes acenam uma mulher nua e um par de cortinas descerradas. Eu próprio já tive, não faz muito tempo, e bem debaixo da minha janela, o mar, o campo, a praça e, nos meus melhores dias, uma paisagem só de mulheres nuas emolduradas e o aceno sem peso das cortinas. Também sei de outros, menos sortudos, que só veem o mundo através da janela alheia, não lhes importando se o que veem é bom ou ruim, já que tudo mais lhes é igualmente alheio, a janela, as mulheres nuas e até a pouca sorte que lhes coube. Mas agora, frente à rudeza dos fatos, a única coisa que posso dizer é que há um homem assassinado debaixo da minha janela.

Hoje meu despertador foi uma bateria de cinco tiros, um cantar histérico de galos de briga lá na rua e, por conta disso, há um homem assassinado debaixo da minha janela. São sete da manhã — minha filha bebe seu leite, mastiga um pedaço de pão, pleiteia um punhado de passas, recusa a colherada de vitaminas. Enquanto isso, debaixo da minha janela, as viaturas tomam conta da quadra, e o carro do IML nos exibe uma frieza feita só de gavetas estreitas, escancaradas.

Também há uma multidão debaixo da minha janela, apesar da hora imprópria e da baixa temperatura. É cedo, faz frio, e o povo é uma ciranda de calor a cercar o morto. Por onde andava toda essa gente, às sete da manhã de ontem, quando nenhum cadáver havia para se ver sobre o asfalto, de bruços, a cabeça florescida, a calça arriada até os joelhos, a cueca escandalosamente metida entre as nádegas azuis?

A polícia faz o seu serviço, procura pistas, procura testemunhas, procura culpados. Procura a verdade que melhor se adaptar à situação. Interroga este ou aquele transeunte. Um ou outro, de passagem, a caminho do trabalho, da padaria, do escritório ou da obra, teve a ambígua felicidade de ver o que aconteceu. Felizardos. Imagino os relatórios orgulhosos, um furioso reiterar de indignações, de queixas comuns, falsos lamentos e espantos: o álcool, as drogas, a falta de religião, o descaso das autoridades, a falência dos valores familiares; a emboscada, a vingança, a tentativa de fuga, as pernas que se embaralharam, o tombo patético da vítima, seus apelos desesperados. De nada serviram. O demônio é madrugador, a bebida fez a sua parte, as drogas venceram, o fim do mundo é iminente, os maias já o previam. Pelo visto, a família, o Estado e até Deus falharam, e por isso, principalmente por isso, há um homem assassinado debaixo da minha janela.

O IML já carregou o corpo e já vai embora, em silêncio, como se prescindisse de motor, de eixos e de rodas. Vai voando, vencendo a curva da Rua 15. O carro branco some, levando o defunto a um último passeio ao largo das floreiras da Boca Maldita. Ele já não pode aproveitá-lo. Os policiais, também quietos, entram agora em suas viaturas, aos pares e muito sérios, conforme lhes ensinaram os melhores filmes do gênero; já anotaram nomes e números o suficiente, já esgotaram todas as possibilidades de pergunta e investigação, não têm muito mais o que fazer, possuem as suas limitações, são homens como qualquer outro. Mas o sangue do morto permanece ali, no mesmo lugar, empossado entre as Lojas Americanas e a Biblioteca Pública, e seus miolos não foram reunidos com o devido cuidado, e o povo, curioso e incansável, continua a rodear o sangue e os restos mortais daquele desconhecido invisível.

Por isso, ainda há um homem assassinado debaixo da minha janela. E ele estará ali durante toda a tarde nublada, e vários outros homens, ignorantes daquela morte e até da sua própria, futura e insondável, e da morte de todos aqueles que amam, estacionarão seus veículos sobre ele, o morto da vez, e tomarão uma cerveja a três passos dele, sob o guarda-sol vermelho-devassa do café da esquina, ou apontarão para ele com nojo ou com ódio, e discutirão os motivos que o levaram àquele fim ignóbil, e sobre ele escreverão crônicas oportunistas, envergonhadas, espúrias e, no fundo, inócuas, pois não conheço palavra que fira mais do que cinco tiros na cara.

Publicado originalmente em vidabreve.com

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