quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Artigo: A questão do fim do livro por Marcelo Spalding

O debate sobre o fim do livro está realmente palpitante, trazendo consigo uma leva de livros ― sim, o bom e velho livro ―, que prometem abordar de frente o tema. A questão dos livros (Companhia das Letras, 2010, 232 págs.), de Robert Darnton, publicado nos Estados Unidos em 2009 e já traduzido pela respeitável Companhia das Letras, é um deles.
Apresentado como "um livro sobre livros, uma apologia descarada em favor da palavra impressa e seu passado, presente e futuro", traz uma reunião de ensaios e artigos do professor universitário nova-iorquino que fez carreira em projetos acadêmicos e dirigindo bibliotecas. Como todo livro de reunião de ensaios e artigos acadêmicos, há uma boa dose de repetição, redundâncias, por vezes desgastando o leitor que fica com a sensação de que só precisaria ter lido um ou outro ensaio, e não a obra inteira.

Ainda assim a obra traz algumas reflexões importantes e toca nos principais temas sobre a questão dos livros na contemporaneidade, inclusive seu fim e digitalização: "o futuro, seja ele qual for, será digital. O presente é um momento de transição, onde modos de comunicação impressos e digitais coexistem e novas tecnologias tornam-se obsoletas rapidamente". E a biblioteca?, questiona. "Esta pode parecer a instituição mais arcaica de todas. Ainda assim, seu passado guarda bons presságios para seu futuro".
Lançando mão do olhar de historiador, Darnton afirma que houve quatro mudanças fundamentais na tecnologia da informação desde que os humanos aprenderam a falar. A primeira foi a invenção da escrita, tida como alguns pesquisadores como o avanço tecnológico mais importante da história da humanidade. A segunda foi a substituição do pergaminho pelo códice, logo após o início da era cristã. O códice, por sua vez, foi transformado pela invenção da impressão com tipos móveis, na década de 1450. E a comunicação eletrônica, por fim, quarta e grande mudança, aconteceu "ontem, ou anteontem, dependendo dos seus parâmetros":
"Disposta dessa forma, a velocidade das mudanças é de tirar o fôlego: da escrita ao códice foram 4300 anos; do códice aos tipos móveis, 1150 anos; dos tipos móveis à internet, 524 anos; da internet aos buscadores, 17 anos; dos buscadores ao algoritmo de relevância do Google, 7 anos; e quem pode imaginar o que está por vir no futuro próximo?"

O Google, aliás, está no centro da discussão do autor sobre o futuro do livro, graças ao ambicioso projeto Google Search Books. Darnton conta que em julho de 2007 ficou sabendo que Harvard estava envolvida em conversas secretas com o Google a respeito de um projeto que planejava digitalizar milhões de livros, começando com o acervo de Harvard e outras três bibliotecas universitárias, para então disponibilizar as edições digitais no mercado. O projeto já estava se desenvolvendo há alguns anos, tanto que em outubro de 2005 havia sido movida uma ação judicial contra o Google por um grupo de autores e editores que afirmavam ter seus direitos autorais infringidos.
O autor vê muitos méritos no projeto, hoje em pleno funcionamento, que irá facilitar o acesso a livros em qualquer parte do mundo, chegando a comparar a internet ao ideal iluministra de divulgação do conhecimento (aliás, a enciclopédia foi um símbolo iluminista como a Wikipedia é um símbolo da Era Digital). Mas também lembra que o Google já controla os meios de acesso à informação on-line da maioria dos americanos (GoogleSearch, Orkut, YouTube, GoogleMaps, GoogleImages.), e que com a desistência da Microsoft de atuar na digitalização de livros e o acordo feitopelo Google na justiça, apenas ele tem recursos tecnológicos, jurídicos e financeiros para um projeto dessa monta, impedindo qualquer outra iniciativa semelhante de atingir proporções parecidas. E "o que acontecerá se o Google der preferência à lucratividade em detrimento do acesso?", questiona Darnton. Segundo os termos do acordo feito entre a Justiça Americana e o Google, nada.
Outra linha de batalha do autor é a questão dos periódicos científicos, convertidos nos Estados Unidos numa indústria organizada e ambiciosa capaz de sugar todos os recursos possíveis das bibliotecas, pressionadas pelos alunos a adquirir os periódicos mesmo que as assinaturas anuais ultrapassem 10 mil dólares (eu já havia escrito sobre essa questão no Brasil em Quanto custa rechear seu Currículo Lattes). Com isso, as bibliotecas deixam de investir no que o autor chama de monografias, que seriam trabalhos acadêmicos de conclusão de cursos de graduação ou pós editados em formato de livro.
Como uma tentativa de recuperar esse tipo de produção, o autor relata sua participação no projeto Gutemberg-e, cujo objetivo era publicar teses de doutorado recriadas para publicação na internet em forma de livro eletrônico. Diferentemente do que imaginavam, os custos para uma publicação eletrônica se mostraram mais altos que os custos para a publicação impressa, graças às complexidades técnicas, o custo com direito de aquisição de imagens, sons, vídeos, etc. Ainda assim o projeto conseguiu um aporte financeiro importante e por alguns anos foi realizado, sem, entretanto, a repecussão e o retorno esperados pelos investidores. Com isso o projeto foi interrompido, mas segundo Darnton foi uma bela amostra de como é possível aproveitar as novas tecnologias para disseminação do conhecimento em novas formas, com nova estrutura, diferente da estrutura livresca. Para ele, o Projeto Gutemberg-e passou por dificuldades por estar a frente do seu tempo, tanto que o próprio Darnton está envolvido na criação de um livro eletrônico sobre sua tese de doutorado.

A concepção de Darnton para seu livro eletrônico é interessante: uma construção piramidal em que o leitor pode ir se aprofundando de acordo com seu interesse específico em determinados temas, ou ler apenas a superfície do trabalho integral. O projeto, que tem se mostrado extremamente complexo na elaboração, ainda é apenas um projeto, mas demonstra como o acadêmico apaixonado por livros percebe a função distinta do que é publicado nas novas tecnologias e do que é publicado em livro.
Na parte sobre o passado do livro, vale mencionar uma resenha sobre o livro Double Fold: Libraries and the Assault on Paper, de Nicholson Baker. Baker se insurge contra a política norte-americano de liberar espaços nas bibliotecas através da microfilmagem. Para tanto era aplicada a técnica da dobradura dupla: se a página do livro fosse dobrada duas vezes e quebrasse, o livro estava condenado. Com isso a capa era retirada e as páginas escaneadas em microfilme, depois sendo o papel descartado. Assim milhares de livros sumiram das bibliotecas e, o que para Baker é imperdoável, coleções inteiras de jornais desapareceram, restritas que estão apenas aos microfilmes.
A questão é: quanto tempo irão durar os microfilmes? Há garantia de que eles estarão intactos pelos próximos cem anos de chuva, sol, calor, umidade? Os livros, embora um pouco amarelecidos, estão preservados por mais de cem anos e nada leva a crer que não permanecerão inteiros pelos próximos cem, até porque o leitor folheia páginas, não dobra páginas. E o microfilme? E as mídias digitais?

Como se percebe, são questões bastante diversas, embora todas ligadas à questão do livro, e parece mesmo que precisaríamos um livro eletrônico em formato piramidal para esgotarmos cada aspecto, ou pelo menos compreender toda sua complexidade. O fato é que o fim ou não do livro é uma questão quase insignificante diante do que se tem feito com a informação e o conhecimento na Era Digital, suas novas formas, sua preservação, sua circulação. Não é o fetiche pelo cheiro ou a forma do papel o que está em jogo. E é bom estarmos atento a isso.

Fonte: Digestivo Cultural

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